Lúcio

Descomeços
2 min readSep 10, 2023

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Não passava das cinco da manhã quando Lúcio saiu de casa em direção a Av. Rio Branco, uma das principais do centro da cidade. Ele não sabia, mas aquele era um dia especial, daqueles que podem mudar o destino sem você perceber.

Anos mais tarde, ele não lembraria muito desse dia, dos seus detalhes, das suas cores, calor e sons, mas aquele 13 de abril de 2025 definiria os próximos anos da sua vida.

A ideia surgiu meses antes e foi sendo alimentada conforme a situação financeira da família se agravava. A mãe doente, o pai inexistente, três irmãos menores e ele, o mais velho, com 10 anos e toda a pressão que faz uma criança achar que já é adulto suficiente e que precisa fazer algo pelos seus.

Saiu cedo de casa sem saber como começar, achou que haveria clientes pela manhã, homens adultos de negócio que gostariam de engraxar seus sapatos elegantes antes de ir para seus trabalhos cheios de pastas e papéis importantes. Passou três horas na rua fria até aparecer um velho com sapatos surrados para o menino engraxar. Seu primeiro cliente.

Eu tinha vinte anos quando Lúcio nasceu, estava no segundo ano da faculdade, faltando aulas e convivendo com crises de depressão. Nunca o conheci. Nunca ouvi sua voz nem soube dos seus sonhos. Nunca engraxei meus sapatos ouvindo suas tagarelices de criança sobre comprar uma casa para os irmãos e ter um sapato bonito como aqueles que ele lustrava todo dia. Nunca olhei nos seus olhos nem fiz comentários genéricos sobre como ele deveria se dedicar aos estudos fingindo que ele vivia no mesmo mundo que eu. Ele não vivia.

Lúcio morreu aos 13 anos. Atropelado.

Talvez, se naquele dia em 2025 tivesse chovido ou se o senhor não tivesse aparecido para ele engraxar os sapatos, talvez ele poderia ter desistido dessa ideia, talvez ele voltasse para casa e três anos depois não estivesse na rua no momento em que perdi o controle do carro, subi na calçada e o atropelei.

Eu havia tomado todos os remédios que encontrei em casa numa tentativa estúpida de acabar com a minha vida. Quando percebi que eles não cumpririam com sua finalidade, resolvi dirigir até o hospital antes que eu começasse a vomitar tudo. Cai no sono no meio da avenida.

Lúcio nunca me conheceu. Nunca se espantou com as marcas nos meus braços. Nunca me ouviu chorar. Nunca presenciou os surtos onde eu me batia, gritava e implorava para acabarem de vez com a minha vida. Lúcio sentia tristeza mas não sabia que isso poderia virar doença, que matava.

Lúcio nunca me viu, estava de costas quando o carro o bateu.

Demorei três dias para acordar. Levou duas semanas para me falarem sobre Lúcio. Tinham medo que a culpa fizesse eu tentar me matar de novo.

Não fez.

A verdade é que, mais do que sentir raiva de mim, eu senti raiva dele.

Tudo bem eu jogar minha vida fora, mas parecia injusto jogar fora a vida do Lúcio também.

Agora, por culpa dele, me sinto obrigada a viver com a certeza de que a pessoa errada é que morreu.

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