Mergulho

Descomeços
2 min readFeb 24, 2023

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Ponte Japonesa (Claude Monet)

Respirava com cautela, sabia que se não controlasse a respiração poderia me afogar.

Não era a primeira vez estava ali. Quanto mais mergulhava, mais confortável era manter-se naquele lugar irreal, em um não-lugar.

Não sei nadar, mas a verdade é que isso não importava.
Me sentia protegida, nada de ruim poderia me alcançar tão fundo.

Talvez nem eu mesma.

Tudo que precisava era tentar respirar, com calma… Muita calma.
O ar não era tão abundante quanto na superfície, era preciso ter cuidado. Se voltasse a me agitar corria o risco de morrer asfixiada.

- O que você ta sentindo?

A voz perturbava o mergulho. Não era minha, havia alguém lá fora que queria me tirar dali. Fingi que não ouvi. Nada me perturbaria.

Lá ninguém me machucaria. Finalmente estava segura.

Voltei a respirar com precaução, imagens vazias passeavam na minha cabeça. Tudo era tão tranquilo que já não importava muito como eu havia chegado.

Se eu fosse capaz de sentir algo naquele momento, provavelmente sentiria o que eles devem chamar de paz.

O silêncio reinava na (i)realidade.

- O que você ta sentindo?

Como uma rede, a voz familiar teimava em querer me resgatar dali.

Abri os olhos. A luz clara refletida nas paredes brancas davam um ar frio e hospitalar pra’quele quarto que fazia parte do que eu chamava de lar.

Eu continuava com a cara no travesseiro molhado de lágrimas e ranho.
Ali fora o ar entrava com uma violência cortante em mim.

Entrava com a brutal constatação de que contra a minha vontade eu continuava existindo.

Sempre tive medo de um dia ir tão fundo e acabar me afogando.
Com o tempo o medo deu lugar a convicção de que existir ali era seguro, de que fugir não era uma má ideia e de que talvez eu só pertencesse ali dentro.

Sozinha.

Em silêncio.

- O que você tá sentindo?

Não mergulhava mais.

- Eu não consigo explicar o que eu sinto. Não sei. Nada.

Ouvir minha própria voz era a confirmação de que tinha voltado, que ali era o real e que por mais que eu tentasse não poderia continuar fugindo dele e de mim.

Achei melhor levantar e assoar meu nariz.

(Escrito em 2017)

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