Nasce Um / Morre Um

Descomeços
17 min readMar 3, 2023

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A Nuvem de Spilliaert — 1903 (Léon Spilliaert)

“O trauma é a memória de um passado que não passa.”

Como contar uma história que não quer ser contada?
Que não deveria ser contada porque jamais deveria ter acontecido?

Dia desses li que a escrita do trauma é inacabada. Ela não tem fim.

Mesmo assim procurei uma forma lógica e coerente de escrever esse texto. Busquei alguma linha narrativa, algum fio condutor que desse sentido.

Não tem. Essa não é uma história linear. Ela não tem sentido.
Tudo o que tenho são fragmentos e é em fragmentos que vou escrever.

Esse vai ser um texto longo que, infelizmente, fala sobre suicídio, violência física, psicológica e sexual.

Eu precisaria de alguém que me ouvisse.
Mas que me ouvisse sentindo cada
palavra como um tiro ou uma facada.
Cada palavra e seu significado sangrento.
(Ariano Suassuna)

No final de 2022 recebi uma mensagem no Instagram. Não conhecia aquele homem. Depois da troca de cumprimentos, veio a frase que desencadeou uma avalanche que continua a desmoronar dentro de mim:

– Sabe… Faz uns 12 anos que quero falar contigo, pra mais. Mas não lembrava nem do teu nome. Uma época lembrava, depois esqueci.
De tempos em tempos procurava. Tenho um pedido de desculpas pendente contigo. De tempos em tempos isso me atormenta.

Ele perguntou se eu sabia quem ele era. Disse que não.
Então ele me explicou quem ele era e porque ele estava há tantos anos me procurando para pedir perdão.

Ele morava em uma república onde em 2009 teve uma festa.
Uma entre muitas que deve ter acontecido naquela época.

Mas aquela foi diferente. Por circunstâncias diversas, eu, com quatorze anos, estava lá.

Ele morava na república onde teve a festa em que eu fui estuprada.

Ele estava na sala quando viu um cara, um homem perto dos 30, levantar, pegar uma menina de quatorze anos, bêbada, pela mão e levar para o quarto.

Foi só quando um desconhecido me disse que passou anos tendo pesadelo com aquilo. Que a imagem do apartamento que ele limpou, a imagem do sangue até nas escadas, da violência do que tinha acontecido atormentou ele por mais mais de dez anos, foi só nesse momento que parei de dissociar e comecei a entender a brutalidade do que aconteceu comigo.

Recebi essa mensagem no dia 29 de dezembro, horas antes de ir pra praia passar o fim de ano com amigos.

Nos dias e semanas seguintes senti como se eu não estivesse aqui.
Ouvia as pessoas, tentava interagir, mas eu não estava lá.

Eu não sentia nada. Eu não pensava em nada. Flutuava sobre o real.

Havia a realidade, mas eu estava em outro lugar.

Sozinho e silencioso.

Eu já havia sentido aquilo antes. Não era novo.

Estive naquele lugar por muito tempo. Tempo o suficiente para ter certeza de que eu ficaria ali, sozinha e silenciosa, por toda vida.

Minha lembrança mais antiga é no escuro.

Sozinha, chorando.

No fundo o Gessinger pergunta o que me fez chorar e diz que nunca mais quer me ver chorar.

Não sei se isso realmente aconteceu. Se foi assim. Mas essa é a coisa mais antiga que lembro.

Depois tem a lembrança de ver fotos, talvez meus bisavós, não sei, pessoas em uma daquelas imagens que não são foto nem pintura.

Na terceira lembrança mais antiga eu não tinha mais que cinco anos.

Foi o dia que minha mãe me chamou para almoçar. Demorei um pouco. Estava sentada na beirada da cama desvirando meus chinelinhos com os pés quando ela voltou pro quarto, me pegou pelos cabelos e bateu a minha cabeça na parede por vezes que eu, tão pequena, ainda não sabia contar.

Falar “bateu a minha cabeça na parede” sempre foi o eufemismo mais aceitável que eu conhecia para falar sobre uma mulher de quarenta anos que espancou uma criança até sair sangue.

Falar que a minha mãe me espancou até sair sangue.

Verdade seja dita, não lembro de ter saído sangue. Só lembro de crescer olhando uma mancha alaranjada na parede. Uma mancha mais ou menos da minha altura com uns cinco anos e que não existia antes desse dia.

Na minha terceira lembrança mais antiga eu termino sentada no sofá da sala, chorando baixinho, sozinha.

Passei semanas tentando entender o que é perdão. O que significa perdoar. Pra que isso serve? Para quem isso serve?

Como perdoar um erro que nem sabia que existia?
Como perdoar alguém que poderia ter evitado que eu fosse estuprada?

É uma libertação? Para libertar quem?
Vai fazer eu me sentir melhor? Vai fazer ele se sentir melhor?

“Eu te perdoo” — três palavras que eu facilmente poderia digitar para que um desconhecido pudesse dormir em paz.

Dos sentimentos mais antigos, a sensação de não pertencimento é o mais constante. Uma das poucas coisas estáveis na minha vida.

De todos os lugares e relações, a que menos entendia e a que mais doía era a sensação de não pertencer à vida. Como se eu não soubesse como fazer isso de viver, eu não coubesse ali, não fizesse sentido estar viva.

Como herança, minha mãe deixou uma bela e extensa coleção de traumas.

Mas isso, isso não era só dela. Era outra coisa. A angústia e vazio que não sabia de onde vinha. Única explicação é que simplesmente era meu.

Eu era assim. Eu era uma coisa quebrada. Nasci quebrada. Ia morrer quebrada. Poderia me destruir porque não faria diferença, eu já era nada.

Estava lavando louça enquanto pensava no absurdo que é um homem que nem lembrava que existia passar anos tendo pesadelo com algo que aconteceu com outra pessoa, que aconteceu COMIGO.

Larguei o prato na pia e me perguntei seriamente como alguém poderia viver depois de algo tão brutal acontecer? Como se vive depois disso?

Só aí eu entendi.

A sensação de não pertencimento que eu ainda enfrentava fazia sentido.

Como é que alguém poderia continuar vivendo depois de ser tão desumanizada? Como é que EU poderia continuar vivendo depois de ser tão desumanizada?

Não é como se eu não soubesse ou não lembrasse do que aconteceu. Lembrava de pedaços soltos. Só nunca tinha pensado o suficiente pra construir uma narrativa. Pra ter dimensão do dano.

Eu não tinha muita noção da sorte que tenho em estar viva.
Desmaiar na rua de madrugada e ser encontrada por pessoas que me levaram para um lugar seguro foi só uma das sortes que me fizeram estar viva nesse momento.

É quase um milagre que eu exista.

“Sobrevivendo a mim mesmo
Ressuscitando a mim mesmo”

Por muito tempo tive pesadelos. Em algum momento, no início da faculdade, falei um pouco sobre. A primeira pessoa pra quem contei foi para o meu namorado. Foi também a primeira pessoa a usar isso pra me machucar. O que não ajudou em nada nas minhas futuras relações.

Aquele não tinha sido o primeiro abuso, eu sabia, então comecei a sentir uma culpa excruciante. Mais uma vez tinha algo profundamente errado comigo.

Eu havia sido violentada e parecia que aquilo não tinha me afetado em nada. Como se nunca tivesse acontecido. E mesmo quando escrevi sobre outros abusos, não citei o estupro na minha adolescência.

Como é que alguém poderia continuar vivendo depois de ser tão desumanizada? Como é que EU poderia continuar vivendo depois de ser tão desumanizada?

E essa é uma das coisas que mais me doem quando penso na vida que vivi.

Eu era tão acostumada a não ver valor em mim, era tão natural me sentir vazia, era tão óbvio que eu era uma dessas pessoas que tinham “nascido” para sofrer, a dor, a violência e a solidão eram tão familiares que eu não conseguia enxergar o quanto aquilo tinha me destroçado.

Receber aquela mensagem foi como reabrir a Caixa de Pandora.
Todas as dores, todos os cortes, todos os pesadelos que em algum momento acreditei que tinha deixado para trás voltaram.

Mas já não eram os mesmos.

- Como é sentir dor sem dissociar?
- É horrível!

Meu primeiro instinto foi responder “eu não estava dissociando” quando a minha psicóloga perguntou como me sentia.

Por alguma razão que acho que desconheço, tenho tendência a duvidar de mim mesma.

Já passei por cinco psiquiatras. De cada um esperei ouvir:

- Você não tem nada, pode ficar bem quando quiser, só depende de ti.

De todos ouvi:

- Transtorno Bipolar do Tipo 2.

O último até complementou com: e Transtorno de Personalidade Borderline.

Talvez a ideia de que “depende” só de mim seja sedutora por dar alguma sensação de poder, de controle. De que não sou refém de uma cabeça patologicamente instável e com sérias tendências a distorcer a percepção da realidade.

Por isso eu quis duvidar quando ela falou que só agora, com quase 28 anos, é que eu tinha parado de dissociar, que finalmente poderia olhar para tudo que me aconteceu, do meu nascimento ao último rompimento, e tentar entender, dar sentido, criar uma história menos distorcida.

Mas logo provei para mim mesma que minha psicóloga estava certa.

Minha memória não é lá essas coisas (o que está mais para meu cérebro bloqueando lembranças do que qualquer outro motivo), por isso eu escrevo.

Alguns sorrisos melancólicos escaparam do meu rosto conforme fui relendo textos antigos.

Sempre quis fugir. De mim. Da vida.

Hoje, mais do que nunca, entendo o porquê.

A resposta é:

Não. Eu não perdoo.

- Como você está, amiga?

Bem… Saio da cama, faço café da manhã, trabalho, faço almoço, volto para o trabalho, de noite leio ou assisto algo, tomo banho, escovo os dentes, boto a placa pra bruxismo. Tenho no mínimo uma crise de choro por dia, como frutas, tenho vontade de ir pra onde ninguém me conheça, vou no mercado. Pago as contas, limpo a casa, tomo os remédios, boto a cara mais simpática para ver meus amigos, durmo, arrumo a cama.

Sempre foi fácil falar sobre alguns traumas. Eles fazem parte da minha vida tempo o suficiente para narrar os ocorridos como quem lê uma lista de supermercado.

Sempre achei engraçado como as pessoas não percebiam que eu só estava listando acontecimentos, sem nunca falar o que estou sentindo.

Não falo o que sinto. Não penso no que sinto. Tento não sentir.
Não sinto. Eu sinto, eu sinto muito. Sinto tanto que parece que vou estilhaçar. Me quebrar em milhares de pedacinhos que nunca mais vou conseguir juntar.

Eu sinto demais e acho que pra sobreviver só me restou tentar não sentir.

Tinha doze anos quando a Cecília morreu. Cá entre nós, ela estava bem longe de receber o Prêmio de Melhor Mãe, mas era uma pessoa admirável e muito querida pela comunidade. Tão querida que hoje uma rua leva o seu nome.

Muita gente passou pelo velório dela, a maioria eu nem sabia ao certo quem era.

Uma semana depois, quando voltei para escola, estava no pátio e a professora de matemática, que conhecia a minha mãe da outra escola onde ela trabalhava, me encontrou.

Nunca vou esquecer da ternura com que ela me olhou. Ela sorriu com carinho, me abraçou e me manteve ali quietinha, em silêncio.
Chorei um pouquinho, mas não estava mais sozinha.

Depois ela me soltou, me deu um beijo na testa e entrou.

Não sou capaz de contar quantas pessoas falaram comigo na época em que a minha mãe morreu. Não lembro de nada do que disseram.
Mas do abraço da Professora Márcia eu nunca esqueci.

Horas depois que dei alta da clínica psiquiátrica, já em casa, saindo do banho, alguém chegou e em silêncio me abraçou.

E eu fiquei ali, quietinha, em silêncio, não mais sozinha.

Sempre precisei muito das pessoas. Meu valor estava atrelado ao afeto delas. Eu só tinha qualidades enquanto outra pessoa gostava de mim.

Era uma lógica simples: olha como essa pessoa é legal, se ela gosta de mim então é porque deve ter alguma coisa boa em mim.

O único problema dessa linha de raciocínio é que quando as pessoas morrem, vão embora, ficam pra trás, junto com elas vai qualquer valor e importância que um dia eu tive.

Dizem que o pânico da rejeição é algo bem comum pra quem tem Transtorno de Personalidade Borderline. Sempre dei outras explicações. Minha infância, minha mãe, qualquer coisa. Eu odeio esse diagnóstico.
De qualquer forma, a rejeição sempre foi um sentimento tão lancinante que entrava em pânico só com a ideia dele.

Paradoxalmente, sempre soube me virar. Morar sozinha, pagar as contas, trabalhar, cuidar de mim mesma, estudar, ser independente. Uma série de responsabilidades que tenho hoje e não ganho nenhuma estrelinha por cumprir elas, mas quando comecei a tê-las, lá pelos meus 15 anos, era uma grande coisa.

Grande o suficiente para ser admirável. Para as pessoas gostarem de mim.

É difícil explicar a minha relação com a dor e com os traumas.
O principal trabalho do meu primeiro psicólogo foi tentar me convencer de que eu não tinha nascido para sofrer, que não existia isso.

Veja bem, toda a minha existência girava em torno disso. Até mesmo as poucas qualidades que aparentemente eu tinha dependiam disso.

— Você é forte
— Você é independente
— Você sabe se virar
— Você é muito madura pra tua idade

Sempre odiei quando diziam que me admiravam por eu ser “forte”.
Eu não era “forte” porque queria, só não tinha outra opção.

Eu não era forte, eu só sobrevivia.
Meu grande mérito era sobreviver a uma série de violências.

Minha grande qualidade era a capacidade de tentar sobreviver a mim mesma.

Por um tempo achei que isso serviria para as pessoas gostarem de mim.
Um misto de pena com admiração. A minha identidade, tudo que eu era, era isso, era assim que eu me via.

Mesmo depois que fui convencida de que eu não tinha nascido para sofrer e de que eu não era apenas uma vítima do destino, continuei me odiando.

Sempre foi mais fácil listar defeitos do que qualidades. Meu valor passou a existir apenas pelo olhar do outro. Eu só era boa se fosse boa para alguém.

Metade dos meus namoros (a primeira metade) foi baseada na necessidade de ser querida por alguém. Quando acabava eu voltava a ser um nada.

Foram incontáveis as vezes que me senti usada. Em todas as minhas relações. Durante elas ou depois do fim. Todas deixaram uma marca profunda em mim. A sensação era de que eu não passava de um pedaço de carne que cada um daqueles homens usou e descartou quando se cansou ou quando encontrou alguém novo, alguém melhor, alguém com valor de verdade.

Isso significa que todos os meus namorados foram abusivos?
Que todos eles me trataram como se eu não fosse uma pessoa?
Que todos me desumanizaram dessa forma?

Provavelmente não. Alguns foram bem ruins, mas sei que vários realmente me amavam. Só que mesmo hoje, mesmo agora vendo as coisas como eu vejo, é impossível não sentir essa dor.

Porque não importa tanto o que de fato eles fizeram, não sei direito, nenhum deles tem como explicar ou provar, o que importa é que o que aconteceu comigo foi tão vil, a forma como fui tratada feito coisa e não feito pessoa foi tão odiosa, que me fez acreditar que eu realmente era só isso: uma coisa.

Uma coisa quebrada que as pessoas usavam e descartavam quando incomodava demais. Substituíam por alguém nova e inteira.
Alguém que era sujeito enquanto eu era objeto.

O que mais me machuca não é a ideia de que algum namorado foi escroto comigo. O que me dilacera é pensar em como, por circunstâncias que nunca deveriam ter existido, eu acreditei piamente que ninguém nunca me amou e que em todas essas relações eu só fui usada.

Porque eu sei que isso não é verdade. E se antes doía porque eu achava que era, agora dói porque passei tempo demais querendo morrer por algo que não era real, que não era meu. Porque eu desperdicei amores e machuquei quem não tinha nada a ver com aquilo.

Não fui só eu quem não saiu ilesa. E não teve nenhuma vez em que esse mar de horror transbordou e respingou em outra pessoa que eu não sofri também.

Quis morrer todas as vezes que fiz alguém que eu amava sofrer.

Eu quis morrer muitas vezes.

“Quanta dor alguém pode sentir
Antes de desabar entorpecido pela própria dor?
E não mais sentir dor?
E nunca mais sentir dor?”

Sei que até agora essa parece a história de uma grande tragédia. Acredite, não é.

Por mais que eu não tenha encontrado afeto, cuidado e acolhimento onde esperava encontrar, não significa que não fui amada e cuidada.

Eu fui. Muito.

Sempre disse que eu era a fodida mais sortuda que existia. Por um bom tempo senti um pouco de vergonha de contar sobre as vezes que morei de favor na casa de algum amigo ou na casa da família de alguma amiga.

Parecia um certo demérito receber ajuda, afinal, eu era forte, independente, sabia me virar sozinha…

Ao longo de toda a minha vida, em todos os lugares, encontrei pessoas que gostavam de mim (sem eu entender porquê), que me acolheram e me ajudaram não só emocionalmente como financeiramente também.

Sou muito grata e me sinto realmente sortuda por isso.
O que me dói, o que me parte o coração, é olhar pra trás e ver que eu não conseguia receber esse cuidado.

Eu vivia tão submersa em dores e traumas que era incapaz de perceber e sentir o afeto de quem estava na minha vida. Por muito, muito tempo eu não consegui sentir essas coisas.

Mesmo quando reconhecia o carinho, parecia que estava enganando as pessoas. Que elas só gostavam de mim porque não me conheciam de verdade, que se conhecessem iam ver como eu era horrível e não iam mais me querer por perto.

Foi assim por anos, é solitário demais se sentir assim.

Era constante a sensação de bloqueio, de distância, como se eu não fosse capaz de me “conectar” com as pessoas. Como se eu fosse incapaz de sentir algo bom.

“Eu tentei não desmoronar
Só me resta tentar”

Teve alguns períodos de certa estabilidade em que achei que estava tudo bem. Eu estava “curada”. Períodos perfeitos para falar sobre qualquer coisa irrelevante na terapia.

Acreditava que dali pra frente tudo seria diferente, seria melhor, que eu nunca mais voltaria para aquele lugar sombrio que existia desde sempre. Tinha uma leve esperança de que até as crises haviam desaparecido para não voltar.

Aprendi da pior forma que não olhar para algo não faz aquilo desaparecer.

Projetei na minha melhor amiga e depois no meu namorado um peso e responsabilidade que não era deles, de um jeito confuso e instável.
Umas horas achava que eu estava certa, na outra que eles estavam me usando.

Me sentia abusada por coisas que me faziam duvidar de mim mesma, da minha lucidez, da minha noção do que é certo e errado.
Não tinha noção da dimensão de cada ato, se era realmente tão terrível ou se era terrível porque era pra MIM, e porque EU sentia as coisas de um jeito distorcido.

Tive pânico do desamparo. Um pavor indescritível de voltar para um lugar que achei que tinha sido destruído, que tinha ficado perdido no passado.
Passei meses ansiosa sem entender a lógica daquele sentimento.
Sem me reconhecer.

Passei meses destroçada com a ideia do desamor. Com a simples possibilidade de não fazer mais parte da vida com aquela pessoa.
De ser “substituída”, “descartada”.

Sou incapaz de contar as crises de choro, de medo.

Foi de uma ironia cruel perceber que eu era inteira justamente quando o meu maior medo se concretizou.

Achei que ia me estilhaçar em mil pedaços, mas contra minha própria expectativa, não. Descobri sem querer que eu não era mais uma coisa quebrada.

Eu não precisava deles porque eu precisava deles. Eu precisava porque eu precisava precisar de alguém, de qualquer um.

Ali, naquele momento, do jeito mais absurdo, aberto, sem sentido e sem respostas possível, eu descobri que eu não precisava que ninguém gostasse de mim para eu ter valor.

Se toda a população mundial me odiasse, não faria diferença.
Eu valia de qualquer maneira.

Isso, para alguém que acreditava com uma convicção irredutível que não merecia viver, isso é revolucionário.

- Como é sentir dor sem dissociar?
- Como você está, amiga?

A verdade é que eu to assustada pra caralho.

Desde o final de dezembro tudo tem sido um caos dentro de mim.
Qualquer certeza sobre qualquer coisa desapareceu.

A única coisa boa é ele não ter conseguido falar comigo antes. Dez, seis, quatro, um ano atrás eu não conseguiria suportar.

Eu fui boa demais no negócio de enterrar e tentar ignorar traumas.

Mas agora que tudo explodiu eu me sinto perdida e com medo.

Não porque eu acho que as coisas vão piorar. Não. Mas porque tá tudo se mexendo dentro de mim de um jeito que não entendo, que nunca aconteceu antes e que não sei como vai ficar.

Eu sei que eu não sou só os meus traumas. Eu sei que não sou uma coisa quebrada. Eu não estou mais no lugar muito ruim que já estive.
Mas nada disso desapareceu e nem vai desaparecer.

A minha lembrança mais antiga vai continuar sendo a mesma.

A minha primeira experiência sexual vai continuar sendo um estupro.

Aquele lugar ruim vai continuar existindo.

Eu só não sei qual tamanho vai ter, onde vai ficar, quem eu vou ser.

E isso me apavora.

Coisas que achei que sabia, coisas que achei que tinha resolvido, a ideia que tinha do que passou, quem eu achava que eu era, o que imaginava do futuro, o que achava que senti, que sentia, que talvez vá ou não vá sentir, a narrativa que construí para dar sentido ao que vivi e a pessoa que me tornei, tudo desmoronou.

Volto pra mesma espiral de perguntas sem respostas que achei que tinha superado. Todos os cortes se abriram e a minha cabeça é um caos, não sei se

Agora que tenho noção de como esses traumas moldaram quem eu sou, minha forma de viver, de me relacionar com os outros e comigo mesma, não sei como vai ser depois.

E se eu não identificar os sintomas? Se não conseguir perceber que aquela é a nova forma de velhos fantasmas? E se eu for um pouco mais saudável, conhecer pessoas e ficar com a sensação de que elas não me conhecem direito, que ela só gostam de mim porque não me conhecem por inteira?

Quem exatamente eu sou por inteira? Onde ficam as cicatrizes e hematomas e onde fica o resto de mim, já que, aparentemente, não sou só um amontoado de dores e machucados?

Eu não sei. Sei que só vou descobrir essas respostas com o tempo, vivendo. E isso me assusta, me dá medo de um jeito que não consigo explicar e que provavelmente não faz sentido para quem lê. Isso também é solitário.

É estranho perceber que as pessoas estavam certas, que eu realmente sou forte, mas não por ter sobrevivido, e sim por ter me tornado alguém decente, sensível, que tenta ao máximo ser gentil com a dor do outro, que tenta desde criança transformar a própria dor em algo bom, algo útil, alguma coisa bonita.

Só que tem coisas que não tem como transformar. É tão denso e espinhento que nada de bom pode sair dali. Aquilo só dói.

Me dá tanta raiva perceber o quanto me machucaram e o quanto isso fez eu me machucar e o quão injusto e errado tudo isso foi. Eu não deveria ter passado por toda essa merda, eu não merecia isso, ninguém merecia, eu não fiz nada pra ter sido objeto de tanta violência.

Pra ter sido tão desumanizada ao ponto de eu mesma me enxergar como coisa e não como gente.

E eu tenho medo, muito medo de achar que estou ficando bem e não estar.

Eu to assustada pra caralho porque tem um monte de coisas dentro de mim que eu não sei quando vão se arrumar, se é que vão. Sei que o caos não vai sumir, que nunca vou ser a pessoa ultra disciplinada e fiel a rotina que achei que precisava ser. Eu já sei que não sou só um amontoado de cortes e hematomas, mas não sei direito quem eu sou além disso, quem vou descobrir que sou.

Queria que fosse simples, que alguém me abraçasse e eu ficasse ali, quietinha, até tudo passar. Só que não é. Eu não sei.

Eu me sinto confusa e eu sinto medo e eu me sinto sozinha.

E eu estou sozinha, não por falta de cuidado e afeto, mas porque eu quero e preciso fazer isso sozinha, seja lá o que for “fazer isso”.

Tenho tentado o tempo todo não desmoronar. Parece que a qualquer momento vou me afundar em uma imensidão de sentimentos confusos e angustiantes. Toda hora eu tenho vontade de chorar.

Tudo é frágil, incerto e me sinto esgotada. É assim que eu estou.
Sentir a dor sem dissociar é aterrorizante. Só queria não encarar.
Não ter que sentir. Mas eu já não posso mais fazer isso.

No meio disso tudo, no fim de uma narrativa inacabada, tem a certeza de que mais do ser forte eu preciso é ter coragem. Não sei como terminar uma história que não devia nunca ter começado. Tento lembrar o quão precioso é o novo dia, que eu existo e isso é muito. A única coisa constante é uma voz amiga que não cansa de falar aquilo que a pele já não me deixa esquecer:

Heroico é o simples ato de existir.

(Escrito em 2023)

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