Quem lava os lençóis
O fato poderia ser explicado em alguns minutos mas os antecedentes, a motivação, os porquês só poderiam ser entendidos depois que uma vida inteira fosse relatada. 24 anos, esse foi o tempo limite.
Duzentos e oitenta e oito meses precisariam ser contados para que aquele ato não parecesse tão cruel. Ninguém queria saber. Ninguém queria ouvir e nem ela queria falar.
Antes mesmo de nascer já sabia que era um estorvo, era indesejada, não deveria existir e mesmo assim estava lá dentro e pior seria quando saísse.
E foi.
Tinha na memória alguns momentos em que não era humilhada e espancada, eram momentos solitários onde agradecia por não saber onde a mãe estava, solidão que desaparecia quando ouvia a voz materna gritando o seu nome logo que voltava pra casa.
Em algumas ocasiões teve a esperança de que um dia tudo isso se transformaria em passado, lembranças de infância, traumas a ser relembrados para um psicólogo, deitada em algum divã.
Com o passar dos anos essa esperança diluiu-se e resignada aceitou que o passado nunca se tornaria um futuro diferente.
Então decidiu que ao menos uma vez na vida sentiria uma felicidade sublime, alegria indescritível que ninguém, nem mesmo a mãe, seria capaz de arrancar de si.
Guardou esse momento, contou os dias, seria seu presente de aniversário, demoraria e a cada dia que passasse, cada soco, cada palavrão, cada homem que a mãe obrigou ela a chupar, cada ameaça as irmãs caso ela fosse embora, tudo isso faria com que o seu grande dia se tornasse ainda mais glorioso.
Reluzia em suas mãos a faca mais afiada que encontrou, aquele era o momento, aquele era o dia da grande noite. As primeiras cinco facadas eram de ódio, violentas, raivosas, um sentimento inexplicável que ia se esvaindo cada vez que a faca entrava e saia da carne da sua ensanguentada mãe. As outras trinta e quatro foram de felicidade.
Depois sentou e esperou.
Quando já estava longe de casa, carregada por policiais horrorizados com tamanha barbárie, se perguntou quem limparia toda aquela sujeira. A perícia iria fotografar, examinar a faca, colher digitais, carregar o corpo e ir embora, mas quem lavaria os lençóis?
Quem iria passar pano em toda aquela poça vermelha embaixo da cama? Não sabia a resposta, ficou apenas um pouco preocupada sem saber se manchas de sangue saem com alvejante.
(Escrito em 2013)